sexta-feira, 25 de junho de 2010

O Mar não está para Peixe

As espécies reunidas formam um gênero, já dizia Aristóteles. E os mamíferos, répteis, anfíbios, peixes e aves que se submetiam ao certame, qual gênero formavam? Vejamos, da definição "animal que presta concurso", o que seria possível concluir?
Nem todos prestaram o concurso.
Houve abstenções, faltas e desordens intestinais que impediram a participação, isso me parece claro, pois conforme o dito anteriormente, nada garante que um bom candidato tenha boas notas. Ocorreu tal coisa com os porcos-espinho, ratos, mosquitos, percevejos, mamutes congelados, tigres e morcegos. Bons candidatos, mas de péssimos hábitos de trabalho.
Os demais realizando as provas, cujas disciplinas já foram aqui explicadas. Porcos e delfins, animais afins, recebiam as melhores notas. Allein claramente preferia os homens e se lembrava de seu pequeno sítio, onde tinha poucos servos, mas leais e inteligentes. Porém os homens estavam em falta, escravizados pelo passado.
Um dia eles andavam pela orla da Praia Vermelha lentamente e o sábio ancião pendulava uma bengala numa mão, enquanto carregava suas sapatilhas na outra (ambos descalços). Allein andava atrás, guiado pelo sábio. Uma tartaruga andava à frente deles, passo firme, lento, convidando à carreira quase. O burguês, ressabiado, apertou o passo e tentou carregar seu companheiro consigo, o qual retorquiu:
- Caro amigo, cuidado, essa areia é perigosa...
Mas o jovem não o escutava e seguia apressado, sem sapatos, entre pedras e areias, acelerando e se aproximando do pequeno animal que diante caminhava. O velho ficou parado, observando, tentando divisar a meta e o fim da praia, envoltos em névoa densa. Tartaruga e o burguês sumiram no longe e um grito ecoou logo: o nobre se machucava!
O velho deu meia-volta, seguiu pelo caminho que acabara de percorrer, enquanto ouvia os urros de dor e os pedidos de socorro do jovem aristocrata. Labradores e pastores, contratados em regime precário e temporariamente, carregaram-no de volta à cabana que se tornava pouco a pouco em palácio. O burguês meteu-se entre pedra e vidro, sem saber, e tinha profundas feridas que subiam até os tornozelos. Dias de febre infinita acometeram-no, com vômitos vis e seqüelas mórbidas nas plantas do pés, deixando-o sem andar por meses. O amigo velou sobre o leito dia e noite, suspendendo o concurso.
Quando o nobre burguês acordou finalmente, vendo o velho contrito à cabeceira da cama, reprovou sua atitude.
- O senhor me abandonou e não sei se merece minha confiança mais. Antes esse concurso escolhesse um novo conselheiro do que somente servos. Quero ver-me livre da sua influência! Disse com a mais borbulhante raiva, boca espumando.
O velho levantou-se calmo, deu meia-volta e respondeu:
- Se eu não tivesse ido embora, quem chamaria os labradores e pastores? Se eu não conhecesse o caminho, quem teria te prevenido? Se eu não estivesse lá, ó nobre amigo, estarias sozinho.
- Mas o senhor não me disse que as tartarugas agüentam andar em qualquer terreno.
- Não disse, porque é óbvio, basta observar a natureza.
Esse diálogo não consta no livro que li, mas posso imaginá-lo real, como antecedendo o resultado do concurso, que foi retomado assim que o rico burguês pôs seus pés no chão...

quinta-feira, 3 de junho de 2010

o Concurso

O procedimento concursal para a contratação de funcionários é uma das grandes incógnitas da administração das coisas humanas. Suponhamos que houvessem gênios, dado duvidoso, e suponhamos que houvessem gênios concurseiros, oxalá não haja! Ponde vosso especialista em certames diante duma prova e quem garantirá - quem - que o resultado da prova será absolutamente positivo? Ninguém, meus caros.
Pois, um concurso envolve elementos incontroláveis, transcendendo o conhecimento de conteúdo e a habilidade concurseira. Uma coceira no pé pode tornar o discernimento errático; uma acne pode desconcentrar o combatente; um árbitro muito leniente pode afrouxar-lhe o siso; uma indisposição, uma desinteria, uma enxaqueca, uma gripe pode comprometer o corpo do pleiteante. E o humano não vai sem o corpo - eis a máxima que nos legou Merleau-Ponty. Que se dirá de outros animais e suas características e suas enfermidades. Por exemplo um golfinho, que nem pode segurar uma caneta?! E o periquito que não canta, o que lhe sucederá num exame oral? Estamos longe da isonomia e da eqüidade, amigos! Há muito pela frente.
Eu não acredito em destino, o rei Alein tampouco - segundo consta nos fabulosos anais que venho lendo -, os golfinhos e os porcos tampouco. Os cachorros, seres duma simplicidade e ingenuidade beirando o vício de caráter, eles sim se crêem escolhidos por algo de transcendente e aleatório. Pobres bichinhos...
Digamos que eu houvese lido naquele antigo livro que os labradores venceram o concurso sugerido pelo sábio amigo do jovem rei. Estaria mentindo. Que fossem os pastores (tenazes!), os cockers (prestimosos!), que fossem os foxes paulistinhas (alardeantes!), os filas, os dogues alemães. Tudo mentira!
Seis longos anos foram precisos para que todos os animais, de todas as espécies, fossem postos à prova e testados em todas as etapas da liça administrativa. Provas de conhecimento geral incluindo português - a língua nova - matemática - a língua dos astros -, direito administrativo - a língua dos carimbos -, direito constitucional, direito internacional, direito dos chimpanzés, dos cavalos (animais consagrados pela jurisprudência). E mais: provas de conhecimento específico, como música, assobio, batuque, bordado, técnicas de carimbado, técnicas de bocejo avançado, estalar de articulações e espreguiçamento (disciplina geral).
As provas de habilidades específicas visavam a medir duas características: lealdade e obediência. O velho moribundo, sentado em sua cabana, estudava os animais que se apresentavam com expediência: pêlos, penas, patas, garras, grifos, bicos, mandíbulas, dentes, guelras, focinhos, escamas, anfibiedades, anfibologias, venenos, antídotos, língua e olhares; nosso faustoso sábio recolhia toda a informação necessária antes de submeter o animal à prova.
Numa dessas incursões, enquanto pensava nas nobres palavras de Alein, refletiu sobre a extensão do futuro império e disse-lhe:
- Se não me engano, ó caro burguês, não há mais terra para governares, nem ares para governares, nem mares...
- Eu não quero profundezas, olimpos, nem esferas remotas ou as covas abissais: eu quero as superfícies, querido amigo!
- As superfícies, ó jovem, são os contornos de cada reino.
- As superfícies, os confins entre ar, terra, fogo e água; porque quem domina as superfícies está em evidência. E evidência é poder!
- Nem as baleias mo mar, nem as nuvens no céu, nem as montanhas na terra e nem as luzes no fogo vão apreciar este seu futuro império burguês sobre tudo...
- A superfície é leve, crislatina, clara e plástica: tudo a chacoalha, nada a derruba; tudo a assombra, nada a ofusca; tudo a atravessa, nada a possui. Dá-me fiscais leais e servos inteligentes.
Essa era a Carta Magna do jovem burguês. O concurso começava...

terça-feira, 25 de maio de 2010

Pastoreio Duro e outros Plânctons

Existe uma velha parábola que li certa vez sobre a organização absurda de um país existente nos confins entre mar e terra. Ali todas as raças se organizam em clãs e mantém assembléias longas e sem alívio. Tubarões parlamentam com caranguejos, macacos com sapos, leões com formigas, homens com suas sombras infatigáveis. Tudo está em concílio, tudo, exceto duas das mais numerosas espécies dos confins entre terra e mar: cachorros e golfinhos. Esse são um império já longevo, comandado por um homem chamado Alein, que é "sozinho" numa língua antiga da terra perdida.
O velho livro onde li esta parábola era antigo e continha descrições bastante pormenorizadas sobre como funcionava esse país formado por esses animais tão díspares, mas minha memória lacunosa se lembra de pouco.
Consta, contudo, que Alein, esse nobre homem, sem filhos, fugia da república dos leões e formigas. Caminhava pelas plagas distantes da aurora, próximo de onde o Sol chora rosas e de onde o mar apavora luzes tremulantes, e trazia somente um conselheiro, fadado brevemente à morte, que fora o preceptor de seu próprio pai e colega do avô em guerras imemoriais.
Perguntou-lhe o nobre burguês:
- Não quero estar sozinho neste fim de mundo, sem um séquito tão competente quanto tu, quando teu corpo alimentar até os vermes.
- Contrate um outro ancião, ó iluminado burguês.
- Não, venho pensando no assunto, caro amigo... E preciso de sequazes ainda mais obedientes. E preciso de servos, muitos servos.
- Servos para quê? Perguntou humildemente o velho.
- Desejo a melhor matilha, a mais forte esquadra e a colméia mais organizada, desejo servos que me tragam todas os segredos da nossa terra perdida e longínqua. Quero servos que me queiram, assim como as moscas querem a luz.
- Pois realize um concurso nesse caso. E preveja o preenchimento de pelos menos 2 postos: o de chefe, para fiscalizar, e o de servo.
Não me lembro mais de quanto tempo foi preciso para realizar o concurso, todavia, salvo engano, Alein precisou de vários anos para convocar todos os clãs...

Caninos e Cetaceos no mundo burocrático



Caro Danilo,

Acho sua metáfora muito boa. Podemos explorá-la de diversas formas para pensar o cotidiano das burocracias. Há faunas riquíssima tanto na ordem dos cetáceos quanto na família dos caninos, tanto em termos genéticos, como em termos lúdico-simbólicos.